Exemplo de vida  

Lembranças avulsas…

Lembro com se fosse hoje as salas de aula, os cabelos grisalhos da professora de Português, lembro-me da doce voz da professora de história e do mau feitio da professora de geografia.

Lembro as colegas mais velhas que desdenhosamente fumavam cigarros comprados com o dinheiro da refeição na cantina.

E, esqueci…

Esqueci as estações do caminho-de-ferro, a maior parte dos verbos irregulares, as classes dos animais e, da maioria das fórmulas de química. Esqueci os caules e as raízes e, esqueci dos sermões da vice-reitora.

Lembro sim, as inúmeras janelas entreabertas que fui espreitando. É que a escola se faz de pequenos nadas que influenciam decisivamente vida fora.

Foram nadas cheios de anseios, medos, tabus, mas sobretudo sonhos. A escola é a casa da poesia, da sabedoria onde aprender sobre trovoadas, ciclones, planetas e clones permitem autonomia e o gozo pela cultura, onde a perenidade do mundo é o objectivo. Mas não quero impingir versos ou retalhos da minha existência.

Agostinho da Silva escreveu: “ (…) ganhar a vida é no professor um acréscimo e não o alvo; e o que importa não é a ideia que fazem dele os homens do seu tempo; o que verdadeiramente há-de pesar na balança é a pedra que lançou para os alicerces do futuro.” Por isso, lembro Sebastião da Gama, poeta e professor, que considerava o ensino, tal como a poesia, um verdadeiro acto criativo.

Não resisto a ler este excerto do seu Diário:

“É preciso, subtilmente, deitar-lhes no sangue este veneno - não tanto para que gostem de versos ou saibam versos de cor, mas para que olhem o mundo através da janela da Poesia, para que beijem tudo graças a Deus, para que saibam olhar, para que reparem nas flores e nas ovelhas. Isto é que se quer que eles façam, sem respeito humano, pela vida fora. Digo “sem respeito humano”, porque é fora de dúvida que a maior parte de nós, Portugueses, temos cá dentro um impulso que nos levaria a fazer tudo ou quase tudo o que fazem os poetas, se não fosse o receio de parecer menos viril. A gente tem vergonha de beijar tudo, de amar as flores, de se enternecer com os animais, de dar um passeio.

Se beija uma árvore é parvo, se traz uma flor na mão, é maricas; se se enternece é fraco; se acaricia uma menina, põe nessa carícia o sexo (...) Temos vergonha de ser sinceros, de que nos creiam parvos, ou maricas, ou fracos, ou lúbricos, ou estroinas. E então perdemos o melhor da nossa vida a ludibriar os outros e a insultar as nossas intenções mais belas e generosas. Ó Portugueses, é tempo de torcer o pescoço ao respeito humano. Olhai que nós somos bons e talvez seja verdade que somos poetas - e isso não deve ser desprezado, mas antes manifestado. Começai a ser sinceros, deixai de ser irónicos e vereis que tudo corre melhor e a vida tem outro sabor.”

Hoje, olho para estes alunos que já não o são e, gosto do que vejo. São vivos, são alegres, são inteligentes…

Mereceu a pena ensiná-los e sobretudo deixá-los aprender, porque aprenderam coisas que nunca seremos capazes de descobrir.

Sebastião da Gama afirmou: “Ensinar é amar”.

 

Autora

Dra. Olga Almeida

Valongo,

04/10/2023